sexta-feira, janeiro 23, 2004

A MENINA DOS TEUS OLHOS

Fosse a menina dos meus olhos puta
e fornicara co'as televisões
As duas nova, da greta e da gruta
E as duas velhas p'las mesmas razões
Rectangular e omnipresente nesga
Que tem p'ra tudo as melhores soluções
Fosse a menina dos meus olhos vesga
logo lhe dera as suas atenções.

Ai, fosses tu, menina dos meus olhos
Com os teus lacnhos e teus caracóis
A inocência vai nos entrefolhos
E fica a pátria-amada em maus lençois
Entram pelas casas ser ser convidados
Tempos de antena e outros futebóis
Ficaram todos mais bem informados
Opinião pública dos urinóis

São cus e mamas a dançar de gatas
Mai'las gravatas dos seus figurões
As euforias ficam mais baratas
E domesticam-se as excitações
Pobre menina, ficas à janela
Depenicando as tuas distracções

Lavas a loiça, fazes a barrela
Mas essa merda não cede às pressões

Os antropófagos das nossas dores
Toram conta da aldeia global
Fazem milhões a converter horrores
Em audiências de telejornal
O insuportável torna-se rotina
E a realidade já é virtual
A dor da gente é a inesgotável mina
Que lhes rentabilza o capital

As reportagens e as telenovelas
Juntam os trapos, pézinhos de lã
Com a verdade ali a olhar p'ra elas
Histórias da civilização cristã
Já não é sangue o liquido vermelho
Que nos reserva o dia de amanhã
E tu, menina, vais-te te vendo ao espelho
E sofres dos dois lados do ecrã

Noventa e quatro já chegou à cidade
Noventa e oito está quase a chegar
Fez vinte aninhos anossa liberdade
Já é tempo de a desvirginar
E se o dinheiro não dá felicidade
Televisões bem a puderam dar
Talvez p'ra manter a sanidade
Eu chegue ao ponto de ter que cegar
E a menina dos meus olhos há-de
Conseguir ver pr'além do meu olhar




José Mário Branco
1997

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